Por que costumamos associar nossas maiores qualidades a nossos traumas?
É fato vastamente conhecido e estudado na Psicologia que traumas de infância geram consequências negativas na vida adulta. Essas consequências são, em alguns casos, devastadoras. A exposição a eventos estressores e violentos em períodos da vida em que a personalidade está em formação predispõe a psique à formação de sintomas destrutivos. É sabido, também, que o que gera o trauma não é o evento em si, mas sim a maneira como é processado, os afetos gerados e os registros assimilados pela psique, que podem sofrer mudanças cognitivas e emocionais a cada vez que o evento é recordado. Por isso, falamos em eventos potencialmente traumáticos, pois não há regras em relação ao que pode traumatizar ou não uma pessoa. Tudo vai depender de como aquele evento se associa ao emaranhado de experiências daquele indivíduo.
O que torna uma criança ou bebê mais vulnerável aos possíveis sintomas destrutivos decorrentes de um trauma? Diversos fatores, dentre eles, aspectos individuais como a predisposição cerebral a algum diagnóstico psiquiátrico e aspectos relacionados ao contexto em que essa criança ou bebê se encontra: há, à sua volta, adultos verdadeiramente aptos a auxiliar na elaboração emocional dos eventos estressores? Adultos que conversam com essa criança, que explicam sobre o que acontece, que se mostram dispostos a ouvi-la sobre como ela se sente, que fazem com que ela se sinta amada e amparada? Ou os adultos à sua volta partem do velho pressuposto de que crianças não entendem as coisas, logo, não merecem ter seus sentimentos e percepções levados a sério? Esse dado faz toda a diferença.
Resumidamente, podemos dizer que o trauma é muito mais o que conseguimos contar pra nós mesmos sobre o que aconteceu, do que o evento em si. A maneira como a pessoa processa o evento após sua ocorrência é determinante para a configuração ou não do trauma psíquico. O objetivo das psicoterapias é, basicamente, atribuir novos significados emocionais às experiências traumáticas passadas, que não ocorrem mais no presente, mas são vividas como se ocorressem. Não conseguimos agir em relação ao evento, mas buscamos modular as emoções associadas àquele registro.
Há uma vasta produção científica, na Psicologia, sobre a relação entre eventos violentos e estressores na infância e prejuízos na vida adulta, como: depressão, ansiedade, insônia, transtornos alimentares, alcoolismo, dependência química, transtornos de humor, etc. A Psicanálise iniciou sua história investigando a relação entre traumas infantis e as neuroses adultas. Há uma forte relação entre fatores como baixa escolaridade, baixa renda e a pertença a grupos socialmente minoritários e o desenvolvimento de transtornos mentais, o que corrobora a ideia de que vivências de privação estão associadas a vários transtornos. A violência, devido à sua relevância e gravidade, é considerada pela Organização Mundial de Saúde um dos principais desafios de saúde pública do mundo. A relação com a própria imagem, autoestima e relações afetivas são seriamente afetadas por experiências de violência sexual, física ou emocional.
Diante de todos esses dados, coloca-se a pergunta: Por que costumamos associar nossas maiores qualidades a nossos traumas? Por que acreditamos que os pontos positivos de nossa personalidade foram possibilitados pelas piores coisas que nos aconteceram?
Existe uma necessidade humana básica de conseguir construir uma autoimagem positiva. Precisamos acreditar que somos bons para que nossa existência faça sentido para nós mesmos. Segundo Ivan Izquierdo, pioneiro no estudo da neurobiologia da memória, “nós somos o que nos recordamos. Sem nossas memórias, nós não seríamos ninguém e sem evocá-las, misturá-las e falsificá-las, nós não poderíamos viver”. Isso significa que não é possível ter uma autoimagem positiva se eu não consigo contar uma história positiva sobre quem eu sou, sobre quem me tornei. Sendo assim, ainda que essa história esteja recheada de eventos traumáticos, é necessário dar um sentido heroico para aquilo que me tornei através dos anos.
Pode ser demasiadamente dolorido para o ego, o centro da nossa consciência, reconhecer que boa carga dos eventos estressores pelos quais passamos poderiam simplesmente não ter acontecido, ou, mais que isso, que eles não tiveram nenhum outro efeito que não seja nos trazer prejuízos significativos. É dolorido olhar para certos eventos da nossa vida e simplesmente pensar: “Eu poderia ser alguém melhor sem isso”.
Quando um evento fica como uma peça desencaixada no quebra-cabeça da nossa identidade, um pedaço de nós carece de sentido. E é por isso que queremos pegar todas as peças e dar um sentido a todas elas, limpá-las, lustrá-las e encaixá-las cuidadosamente no todo que somos. Mas a realidade nem sempre é tão gentil e fato é que a maioria das pessoas sequer consegue usar as adversidades de sua história em favor de construir qualquer coisa de positivo, mesmo que tentem se convencer disso.
Não, você não é uma pessoa empática, generosa, amorosa ou prestativa por causa dos seus piores traumas. Isso faz parte de uma cultura da positividade tóxica, segundo a qual o amor e a gratidão curam tudo, de forma que devemos ser gratos até mesmo ao que nos aconteceu de pior e a quaisquer pessoas que tenham nos feito mal! Esse pensamento não leva a nada, a não ser a uma negação das nossas próprias dificuldades e limitações, além de tornar inacessíveis à consciência nossas sombras. Se você passou por negligências, violências de qualquer espécie, abusos, maus tratos, desamparo, se você não foi cuidada como merecia por quem deveria fazer este papel: não, você não se tornou uma boa pessoa por isso. Você não precisa olhar pra nada disso com gratidão. Muito provavelmente, você teria as mesmas características das quais se orgulha ainda que não tivesse passado por essas adversidades.
A sua empatia, amorosidade, generosidade, vêm dos eventos da sua vida em que você foi acolhida, em que você se sentiu amada, em que alguém foi generoso com você, em que você pôde ler o amor nos olhos de um cuidador. Tudo isso também faz parte do que te constrói e tudo isso formou suas ferramentas internas. É por isso que você pôde se tornar quem você é: não POR CAUSA das suas experiências traumáticas, mas APESAR DELAS.
Sobre os traumas, é sempre possível elaborar e tentar construir uma narrativa mais positiva sobre eles, para que consigamos integrá-los à totalidade do que somos. Mas, para isso, uma boa dose de coragem e disposição para sair da negação em relação às nossas sombras é requisito básico.
Kommentare