Sobre mulheres e solidão
Em meu trabalho na clínica, um aspecto tem me chamado bastante atenção: a frequência com que as mulheres relatam uma sensação de estarem sozinhas. Essa sensação de solidão gera uma grande angústia e está relacionada ao desenvolvimento de sintomas de ansiedade e depressão. É algo que precisa ser acolhido e trabalhado com muita atenção.
Ao contrário do que se possa imaginar, essa sensação de solidão não tem a ver com estar ou não em um relacionamento amoroso. Percebo que algumas mulheres que namoram ou estão casadas relatam esse sentimento de forma até mais intensa do que outras, que estão solteiras. Não estamos falando de uma solidão no sentido amoroso.
Sobre o que estou dizendo, então? Sobre uma sensação que se relaciona com a falta de uma conexão real com outra pessoa. E nem sempre estar em um relacionamento amoroso significa que essa conexão foi estabelecida. Eu arrisco ainda ir mais além, e diria que talvez o que gera essa solidão nas mulheres é a dificuldade de estabelecer uma conexão real com outras mulheres.
Há algo na conexão entre mulheres que é muito peculiar. Existem diversas teorias que explicam isso, nos estudos sobre a Antropologia da Mulher, na Psicanálise e até mesmo na Psicologia do Desenvolvimento. É extremamente curioso que essas teorias sejam tão pouco difundidas e que exista um discurso tão poderoso que circula no senso comum nos ensinando exatamente o oposto.
Crescemos ouvindo que mulheres são menos confiáveis, que a amizade entre mulheres não é verdadeira. É comum ouvirmos mulheres reproduzindo esse aprendizado e dizendo que preferem homens como amigos. São comuns piadinhas e brincadeiras sobre a falsidade da amizade entre mulheres.
É realmente impressionante o poder do senso comum e da lógica patriarcal. Isso passa a fazer parte da nossa maneira de ver o mundo, de vermos umas às outras e de enxergarmos a nós mesmas; passando a constituir, assim, a nossa própria subjetividade, valores e autoimagem.
Para nos ajudar a ampliar a compreensão do assunto, vamos recorrer a alguns conceitos da Psicologia Junguiana. Carl Jung formulou o conceito de inconsciente coletivo, que é formado por arquétipos. Não é necessário, aqui, nos estendermos nesses conceitos. Vamos focar apenas em duas estruturas que nos interessam, que são a persona e a sombra. Tudo o que você precisa saber é que a persona e a sombra são arquétipos do inconsciente coletivo, ou seja, estruturas que fazem parte da nossa psique. Vamos entender um pouquinho melhor esses dois arquétipos.
A persona é o arquétipo que está relacionado à nossa imagem social, à parte de nós que preferimos expor socialmente. Não se trata de uma ideia de falsidade. Ter uma persona bem estruturada é fundamental para que alguém seja capaz de interagir socialmente. A sombra, ao contrário, se relaciona ao que há de mais profundo em nós. Eu percebo uma tendência de algumas pessoas mais leigas em relacionar a sombra ao que há de negativo em nós. Isso não é verdade. A sombra é a nossa parte mais oculta e profunda – e isso inclui tanto nossas melhores potencialidades quanto nosso lado menos admirável. Nos momentos em que você está sendo mais verdadeiramente espontânea, são esses os momentos em que sua sombra aparece. Quanto mais reprimida a sombra, maiores as chances dela se mostrar de formas assustadoras e sinistras.
Agora, vamos relacionar esses dois arquétipos à nossa organização social de gênero.
Sabemos que a feminilidade é um conceito artificial, construído pelo patriarcado e fundamentado em uma ideia masculina sobre as mulheres. A feminilidade, como a conhecemos, é uma ideia limitada do que são as mulheres e estabelece máscaras que as mulheres passam a tentar incorporar, para se adequar à ideia do que é ser uma mulher. Essas máscaras podem ser nomeadas como: a maternal, a boazinha, a sexualizada, a descolada, a guerreira, etc.
É uma grande ilusão pensar que alguma de nós está isenta a essas máscaras e a esses valores. Como disse, isso passa a fazer parte da construção de nossa subjetividade, pois está presente na nossa socialização desde que nascemos. Quanto mais tomamos consciência disso, maiores as possibilidade de irmos, aos poucos, nos libertando.
Como isso se relaciona à sensação de solidão, da qual estávamos falando?
Simples. Quanto mais energia eu direciono à minha persona, reprimindo, assim, a minha sombra, menos eu consigo estabelecer uma conexão real com outras pessoas. Afinal de contas, menos eu irei me mostrar ao outro. E se expor de maneira verdadeira e sincera é o primeiro passo para que uma conexão seja estabelecida.
A ideia que estou defendendo é que a sociedade patriarcal estimula que mulheres reprimam sua sombra e vistam máscaras que se adequem aos ideais de feminilidade. O resultado disso é que, ao invés de estarmos nos mostrando umas às outras com sinceridade e confiança, estamos entrando em competições bobas sobre quem é mais feliz, sobre quem está mais adequada à ideia do que é ser uma mulher completa e realizada. E, infelizmente, na cultura patriarcal, a ideia de uma mulher feliz não prioriza a união e vínculo com outras mulheres. E sim, a presença de um homem, filhos, sucesso profissional e, claro, dar conta de tudo isso com um belo sorriso no rosto, afinal, somos guerreiras!
Observe o quanto os círculos de mulheres têm se espalhado por todo o país, ouça o que essas mulheres dizem a cada vez que participam de uma experiência de troca e acolhimento com outras mulheres, e me diga você mesma se isso não aponta para o quanto temos estado carentes disso. E isso tem chegado aos consultórios de Psicologia através de discursos como “Eu sou casada, tenho filhos, tenho minha carreira… Eu tinha tudo pra estar feliz. Mas me sinto tão sozinha às vezes!”.
Mulheres estão carentes do acolhimento, da amizade e da cumplicidade que elas sabem bem que só é possível vir de outra mulher. E quando digo isso, não estou dizendo que não seja possível a conexão com um homem. Mas que a conexão entre mulheres é de outra natureza e é insubstituível.
De todas as mentiras que o patriarcado nos conta, essa é, talvez, a mais tóxica. Ensinar às mulheres que elas devem competir umas com as outras ao invés de cultivar laços reais de amizade e cumplicidade entre elas é uma maneira de retirar da vida de uma mulher o que talvez seja sua maior fonte de força, seu respiro mais valioso em meio a um ritmo de vida frenético e em meio a seus problemas.